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BUENOS AIRES, PE (UOL/FOLHAPRESS) – Brasil e Argentina não se bicam no futebol há mais de um século. Mas essa rivalidade histórica, uma das mais acirradas do mundo, mudou. Uma nova onda de violência tem assustado torcedores e autoridades de ambos os lados.
Racismo e a xenofobia entraram fortes no jogo.
No ano passado, um torcedor do San Lorenzo jogou uma banana em um garoto negro no Morumbi. Apoiadores do River imitaram macacos diante do ônibus do Fluminense em Buenos Aires.
Em Copacabana, um seguidor do Boca chamou brasileiros de “escravos, macacos de merda” ao ser entrevistado na TV argentina. Em contrapartida, centenas de argentinos foram agredidos nos últimos meses aqui por torcedores rivais e pela Polícia Militar.
O Brasil, antes considerado um paraíso tropical, passou a ser visto como um vizinho xenófobo. E brasileiros vivendo na capital argentina dizem que a recíproca é verdadeira.
O UOL foi a Buenos Aires e conversou com mais de 20 pessoas, entre brasileiros e argentinos, para entender o que serviu como estopim para a agressividade que tomou conta da rivalidade nos últimos anos.
Cada lado tem uma explicação para a violência. Os argentinos dizem que os vizinhos pentacampeões não sabem lidar com a perda da hegemonia da seleção. Para os brasileiros, o racismo cresceu e nunca foi tão escancarado, e a intolerância seria uma reação.
Em janeiro de 2023, a legislação brasileira endureceu a pena para o crime de injúria racial, que agora é equivalente ao de racismo, ambos imprescritíveis e inafiançáveis.
Desde então, sete argentinos foram presos em estádios acusados de racismo, segundo o Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
Na Argentina, o racismo também é crime, mas o país caminha em sentido oposto: um pacote de projetos enviado pelo presidente Javier Milei ao Congresso prevê a extinção da lei que criou o Inadi, órgão responsável por receber denúncias de discriminação.
“MEU CONSELHO: NÃO APAREÇA NO RIO”
Em um café em Buenos Aires, José Luís Palazzo, 71, sócio do Boca Juniors, relembrou ao UOL as agressões sofridas no Maracanã.
Ele estava no Rio para a sua 12ª final de Libertadores, entre o Fluminense e o clube argentino, mas a PM, usando gás de pimenta, cassetetes e cavalaria, provocou a dispersão forçada dos visitantes.
Na confusão, Palazzo foi empurrado por um policial. Caído, recebeu chutes nas costas. Ele e centenas de argentinos, com ingressos na mão, foram impedidos de ver o jogo. O Boca perderia o título, e o veterano boquense a vontade de um dia voltar ao Brasil.
“Não sei o que aconteceu. Nos últimos vinte anos passei férias dez ou doze vezes no Brasil. Conheci lugares e pessoas espetaculares. Agora fui maltratado até pelos garçons. Meu conselho a qualquer argentino é: não apareça no Rio”, disse José Luís Palazzo.
Em uma semana em Buenos Aires, a reportagem ouviu relatos semelhantes de argentinos que voltaram do Brasil chocados com a recepção violenta.
Em agosto de 2023, um torcedor do Argentinos Juniors foi espancado por rivais do Fluminense. Em novembro, mulheres e crianças foram vítimas ou viram arrastões em Copacabana antes da final da Libertadores.
No mês seguinte, uma briga com brasileiros e a repressão da PM aos argentinos quase impediu o jogo entre as duas seleções pelas Eliminatórias.
PERDA DE HEGEMONIA
Ao buscar uma explicação esportiva para o problema, os argentinos tendem a minimizar a prevalência das piadas racistas como combustível da hostilidade.
Diego Macias, editor-chefe do jornal esportivo Olé, me contou uma teoria.
Brasileiros não estariam aceitando as vitórias recentes da seleção alviceleste, atual campeã do mundo e sul-americana – título este conquistado contra o Brasil no Maracanã.
Durante muito tempo, o Brasil foi simpático para todo o planeta pela forma como joga, pela sua alegria, pela sua forma de encarar a vida. Nessa última Copa [no Qatar] isso mudou. E isso parece incomodar os brasileiros. Diego Macias
É verdade que a imprensa argentina tem tentado mudar. Em transmissões ao vivo, comentaristas condenam com veemência torcedores que cometem atos racistas, uma postura mais alinhada com o que tem ocorrido na sociedade e na legislação do Brasil.
Mas nem sempre foi assim. O Olé encarnou como nenhum outro veículo a rivalidade entre os dois países e algumas vezes passou dos limites.
Foi o que ocorreu em agosto de 1996, quando a seleção de futebol argentina avançou à final das Olimpíadas de Atlanta. Na ocasião, o Olé escreveu a manchete “Que venham os macacos” para apresentar a outra semifinal, entre Brasil e Nigéria.
O jornal repetia assim uma imagem que já aparecia na imprensa argentina desde 1920, quando o “La Crítica” chamou de macacos jogadores brasileiros que foram a Buenos Aires para um amistoso.
“Mesmo no contexto dessa época, foi ruim”, respondeu Macias sobre a manchete de 1996. “Não tivemos nenhuma outra capa tão criticável. Foi ruim? Sim. Pedimos perdão? Sim. Esse erro teve consequências internas.”
Nas mesas-redondas da TV, nos estádios ou nos bares de Buenos Aires, o racismo não aparece como uma das causas da violência de que os argentinos têm reclamado.
TOMA LÁ, DÁ CÁ
No bairro de Lugano, o psicólogo Alejandro Gimenez atende a pacientes no sofá da sala, decorada com uma miniatura da Bombonera, o estádio do Boca.
Ele foi um dos torcedores impedidos de entrar no Maracanã na final da Libertadores, mesmo tendo ingresso. Daquele dia, o que ficou para ele foi o ódio que diz ter visto nos olhos dos policiais.
Para Alejandro, a violência dos brasileiros cresceu desde a Copa de 2014, quando uma multidão argentina invadiu as praias do Rio, as estações de metrô de São Paulo e os botecos mineiros.
Os brasileiros tomaram de 7 a 1 naquela Copa. Os argentinos chegaram à final.
“O brasileiro não gostou, como nós também não gostaríamos, de ver tanta gente festejando quando você estava eliminado, perdendo de 7 a 1. Para quem não é do futebol, isso pode parecer uma idiotice, mas a maioria dos brasileiros é boleira, assim como nós. E pra quem é boleiro, isso pega muito, é forte.”
Para os brasileiros que moram em Buenos Aires, porém, o que pega mesmo são os atos de racismo e xenofobia.
Em um bar na grande Buenos Aires, a reportagem encontrou o estudante baiano Victor Barreto, que joga futsal em uma faculdade de medicina.
Ele não é negro, mas sua mãe é. O racismo o atinge de forma diferente.
Quando a gente fazia dois, três gols, eles falavam: ‘Volta pro seu país, macaco de merda!’ Encontraram um jeito de afetar a gente e afetam mesmo. Quando essas coisas acontecem, lembro de tudo pelo que a minha mãe passou. Victor Barreto
A chefe de cozinha Fernanda Passos, mulher negra e moradora de Buenos Aires desde os anos 1990, costumava frequentar a Bombonera com o filho e o ex-marido, na época membro da torcida organizada “La 12”.
O garoto passou a não querer mais ir ao estádio, cansado de ouvir xingamentos racistas dirigidos a jogadores pretos ou de origem indígena.
‘Negro de mierda’ é uma expressão tão frequente quanto um cumprimento. Aqui eles dizem mais negro de mierda do que ‘olá’. Tem uma hora que a pessoa cansa.
PRESOS, PERO NO MUCHO
Em agosto de 2022, três torcedores do Boca foram detidos no estádio do Corinthians após serem filmados fazendo gestos considerados racistas. Eles foram levados à polícia e autuados por injúria racial.
Dois deles pagaram fiança de R$ 20 mil para evitar a prisão. O terceiro, descrito no processo como um morador de rua, foi solto depois que a Justiça o considerou sem condição de pagar fiança.
O UOL tentou encontrá-los em Buenos Aires para ouvi-los sobre a acusação – eles nunca haviam falado com a imprensa brasileira.
Sebastián Palazzo não quis receber a reportagem em seu escritório. Ele negou ser quem era, deu um nome falso e disse que “entraria em contato com Sebastián” para informá-lo sobre o pedido da reportagem.
O UOL comparou seu rosto com fotos que estão nos autos do processo e confirmou a identidade dele com um jornalista argentino que o conhece e com um parente.
No processo, a defesa de Sebastián argumenta que o gesto que ele direcionou aos corintianos não foi racista, mas uma provocação clubística.
No vídeo usado como prova na Justiça, o argentino ergue os braços de maneira alternada, num gesto de “sobe e desce” que faria referência ao rebaixamento do Corinthians em 2007.
Logo em seguida, Sebastián estica os braços e movimenta os pulsos, como se imitasse um macaco.
Já Frederico Ruta foi filmado com o braço erguido ao alto, como se fizesse uma saudação nazista em direção aos corintianos. O UOL foi até a casa dele, mas não o encontrou. Por telefone, ele disse que preferia não dar entrevista.
“Os atos racistas praticados pelos denunciados, em meio a um estádio de futebol, cuja partida foi televisionada em canais de amplo acesso ao público, atingiram diretamente a coletividade, ou seja, todos os integrantes de certa raça, cor, etnia, não se restringindo à honra subjetiva de determinada pessoa”, escreveu o promotor Roberto Bacal ao denunciar os três argentinos pelo crime de racismo.
Questionados sobre a persistência das ofensas racistas, os argentinos em geral condenaram as agressões, mas criticaram também a resposta brasileira a esses gestos.
NOTAS QUEIMADAS
Desde o ano passado, torcedores brasileiros começaram a queimar notas de peso e a atirá-las contra os rivais, uma referência ao caos econômico do país vizinho.
Para muitos argentinos, o gesto soa como humilhação e uma atitude tão ofensiva quanto o racismo.
“Isso é uma falta de respeito. É como se eu baixasse as calças e cagasse na bandeira do Brasil. O que você acharia disso?”, perguntou Diego Ibañez, torcedor do River, enquanto esperava para entrar no Monumental de Nuñez para assistir ao seu time.
O sociólogo argentino Pablo Alabarces, notável estudioso do futebol sul-americano, um dia disse que os argentinos odeiam amar o Brasil e os brasileiros amam odiar a Argentina.
Mas hoje Brasil e Argentina parecem falar uma língua e repetir gestos cada vez mais incompreensíveis por quem está do outro lado do alambrado.
“Já disse aos meus filhos que essa foi minha última viagem ao Brasil”, anunciou Palazzo. “Vou seguir o Boca em todos os países, mas ao Brasil não quero ir mais. Nem de férias. É uma pena.”
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